por Filipe Furtado
A Gente é o primeiro
longa-metragem solo de Aly Muritiba (antes ele foi um dos diretores do coletivo
Circular), mas é também a terceira parte da série de filmes do realizador sobre
o cotidiano das prisões brasileiras, após os curtas A Fabrica (2011) e Pátio
(2013). É importante ter a ideia da trilogia do cárcere em mente ao pensar A
Gente, já que o filme todo se constrói sobre o quadro de cinema e o que é
permitido entrar ou não nele. A primeira opção de Muritiba é justamente colocar
no fora de campo o que privilegiara nos dois filmes anteriores – os presos e
suas famílias, que raramente aparecem no filme e geralmente são somente como
uma voz fora do quadro – e privilegiar a figura do agente penitenciário e as
muitas dores de cabeça de se administrar um presídio. Os filmes anteriores da
trilogia se tornam, portanto, o contracampo do filme que Muritiba busca
realizar agora, e A Gente em momentos específicos busca conexões ao usar opções
de encenação que trazem à memória os dois curtas. É uma operação das mais
curiosas justamente porque o foco, os agentes, é precisamente o material humano
que a maior parte de obras que versam sobre o espaço do presidio tende a
ignorar.
O olhar de A Gente remete com
frequência aos documentários sobre instituições de Frederick Wiseman, mas há
uma diferença notável que separa o filme de Muritiba do mestre americano que é
o de aproximação com o objeto: o cineasta é ele próprio um ex-agente penitenciário
e passou sete anos trabalhando na mesma penitenciária do filme. Por mais que
sua câmera procure dar um passo para trás e olhar com distancia maior este
universo, o filme jamais escapa de revelar uma intimidade com o espaço e os
dramas que ali se desenrolam, assim como consegue estabelecer uma cumplicidade
com as suas personagens que outros documentários de observação não alcançam.
De certa forma, A Gente sugere a
outra imagem complementar àquela de O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003);
como no filme de Paulo Sacramento, impressiona justamente a proximidade que ele
alcança de seus personagens e o consequente livre acesso que o cineasta tem a
um material ao qual somente a especulação da ficção normalmente pode dar corpo.
Se O Prisioneiro da Grade de Ferro fazia este movimento para trás das grades, A
Gente busca o mesmo nos corredores e salas administrativas. O efeito não tem
propriamente o mesmo frescor, mas Muritiba encontra algumas imagens e situações
singulares e seu olhar sobre elas tem na maior parte do tempo o mérito de
evitar o discurso fácil que costuma ser atraído para um tema como o seu.
O filme é muito hábil justamente
em estabelecer uma relação com o fora do quadro, sobretudo com as duas
presenças institucionais constantes, mas invisíveis, que juntas administram o
presídio: as facções criminosas e o governo do estado. Boa parte das sequências
de A Gente lida com personagens precisando resolver questões que vêm de fora e
com a maneira como elas afetam o cotidiano do presidio. Toda a construção do
filme segue esta lógica de dentro e fora, com um fora de quadro que reforça o
caráter claustrofóbico do presidio. Muritiba é inteligente o suficiente para
reconhecer a diferença de poder entre presos e agentes e não simplesmente
torná-los equivalentes, e tem uma facilidade muito grande em encenar seus
corredores como um espaço asfixiante e reforçar a ideia de um fora de campo
sempre pronto a fazer uma pressão sobre o que vemos. Não deixa de ser curiosa a
opção de sair ocasionalmente do presidio para acompanhar o protagonista
Jefferson Walkiu na sua segunda ocupação como pastor, em sequências não muito
bem resolvidas, mas que servem como um escape para a opressão e tensão
constantes que o filme constrói lá dentro.
A Gente termina por se revelar
mais um dos vários filmes brasileiros políticos recentes que se constrói sobre
a lógica de uma panela de pressão, que o cineasta administra com cuidado. O
filme se estrutura entre dois discursos: o primeiro, esperançoso, quando Walkiu
assume o comando do grupo promovido de dentro; e o segundo, amargurado, quando
ele anuncia o seu afastamento e avisa que seu lugar será assumido por uma
pessoa de fora, mais apta a realizar a política carcerária que o estado
definiu. Entre estes dois discursos, temos as desventuras práticas de Walkiu em
tentar servir de intermediário de uma situação fora de controle.
Com isso, A Gente se soma a uma
tendência recorrente nos filmes brasileiros recentes de observar uma questão e
envolvê-la sob a chave do fracasso – tendência que não deixa de ser curiosa no
seu contraste com o discurso desenvolvimentista e otimista do governo federal.
Aqui, o arco dramático do filme todo aponta para a inevitabilidade deste
fracasso, e o protagonista a entregar o seu cargo é uma inevitabilidade do jogo
entre dentro e fora que o Muritiba costura. O filme engasga um tanto nos
momentos em que busca partir do especifico que descreve para um alegórico mais
amplo (uma ideia já presente no trocadilho do título), mas é sempre muito mais
forte quando permanece concreto e direto.
Se A Fábrica e Pátio alcançaram
destaque justamente por abraçarem opções de encenação que davam vazão para o
encarceramento das suas personagens, parte da força de A Gente nasce exatamente
de como o filme encontra formas de transformar o documentário de observação num
espaço que privilegia uma mise en scène elaborada, com muitos momentos de
grande vigor que dissolvem a questão de se o que vemos é encenado ou não. Num
primeiro momento, a aproximação proposta por Muritiba pode sugerir um filme que
está disposto somente a dialogar com modelos bastante conhecidos de
documentário, mas o filme aos poucos põe em primeiro plano seu gosto por um pôr
em cena muito mais próximo do ficcional, com um trabalho apurado de construção
de espaço que reforça a ideia de cárcere. A Gente termina se mostrando o
verdadeiro contracampo de Pátio: o cárcere aqui remete sempre ao quadro
cinematográfico.
Aly Muritiba